Abstração na compreensão da sociologia

L'Embarras du Choix

Esta imagem foi tirada do site artactqc.com, criado anonimamente para apoiar a luta contra o neoliberalismo no Quebéc, Canadá. Não é a primeira vista que vai revelar tudo o que ela quer dizer. A imagem é intitulada “L’Embarras du Choix” (“O embaraço da escolha”, traduzido livremente) e pode ser interpretada de diferentes maneiras a depender de quem faz esse esforço. A intenção de colocá-la para os estudantes do ensino médio dentro de uma aula introdutória à ciência política, especialmente falando sobre a negligência à participação que a maioria dos brasileiros apresentam, não foi de fazer apologia ao protesto mascarado e armado, mas de colocar em pauta a perspectiva anarquista, quebrando preconcepções que rotulam os grupos black blocs como meros vândalos, por exemplo. Em síntese, queríamos chamar a atenção para a fundamentação reflexiva, ideológica e cognitiva de movimentos como esses, aguçando a curiosidade futura no esforço de compreender eventos políticos, quaisquer que sejam, a partir de seu próprio ponto de vista, antes de absorver qualquer julgamento de valor que tenha a força da tradição ou do carisma de quem o profere.

L’Embarras du Choix. ArtactQc.

Nos dias 24 e 31 de julho, eu, Alcélia Amorim e Isabela Valin executamos o projeto educativo intitulado “Política, Cidadania e Participação” na escola estadual José Lins do Rego. O projeto foi inicialmente uma avaliação da disciplina de Didática com a prof.ª Mara Leite Simões, mas que transpomos para o Pibid, utilizando o seu espaço conforme permissão da coordenação do subprojeto e da supervisora na escola, a prof.ª Rejane Pádua. O objetivo geral dessa intervenção foi discutir as formas de participação popular no sistema democrático brasileiro. O primeiro dia, porém, foi dedicado a compreender as razões da negligência à participação política de maior parte da nossa sociedade. A metodologia utilizada: apresentação de slides mostrando fotografias, gravuras e pinturas por meio das quais instigamos as discussões planejadas. Neste ínterim apareceu a gravura L’Embarras du Choix.

Quando a colocamos no projetor, esperamos a reação do público. Eram duas turmas de 2º ano, consideradas as piores da escola em termos de rendimento na aprendizagem. Cerca de 50 alunos observavam a imagem, curiosos, mas não expressavam reação. Lembro que também fui apático na observação dela, até que com algum vagar as coisas começaram a fazer sentido. Nós os instigamos a falarem o que acharam da imagem, mas houve muita hesitação, tanto quanto fascínio. Quando um deles falou, talvez por uma equivocada pressão de nossa parte, apontou para o fato de as cédulas da votação mudarem dentro da urna para uma figura de representação dos dois partidos/candidatos. Esta é a primeira camada da imagem; eu diria que a única óbvia e a primeira a ser percebida por mim também. Tratamos da imagem a partir dessa constatação.

Não houve outras intervenções. Voltamos a instigá-los várias vezes e, sem sucesso, recorremos à explanação dos vários elementos que a compõem. Questionei-me o motivo pelo qual a imagem foi tão difícil para eles. A explicação pode ser bem ramificada, a começar pela maneira como abordamos a turma e iniciamos aquela aula. O problema de vários deles pode ter sido timidez, depressão, desgosto com alguma coisa ou alguém, simples e plena apatia; pode ter sido o preconceito contra o assunto “política” ou mesmo contra a disciplina de sociologia, ou ainda um costume muito arraigado de heteronomia intelectual, no sentido iluminista. De fato, como comentou posteriormente um colega nosso, já professor, “os jovens estão acostumados a coisas bem mastigadas, fáceis de digerir”.

No esteio de sua constatação, muitos professores repetem em seus discursos que a dificuldade de se aprender sociologia decorre de sua grande exigência de abstração. Acredito que, interpretando essa concepção, o problema é quando as abstrações se entrecruzam e se complexificam. Do Estado falamos em função social (Durkheim), ideologia (Marx) e monopólio da força física (Weber), depois juntamos tudo para compreender os aparelhos ideológicos (Althusser) e a hegemonia (Gramsci), e queremos ainda que essa reflexão inteira fundamente uma crítica à democracia neoliberal, fazendo-os aderirem politicamente a essa posição. E no final os alunos continuam dizendo que socialização é quando os animais aprendem a ser gente – de que animais eles estão falando não dá pra saber. Hygino H. Domingues, professor de matemática, ilustra bem, na sua área, o uso da capacidade de abstração que queremos ver funcionar nas aulas de sociologia:

Todos os calculistas acabam descobrindo atalhos que lhes facilitam as proezas. Não foi outra coisa que fez Gauss, aos 10 anos de idade, quando surpreendeu seu professor que acabara de passar um exercício “longo” (achar a soma dos números de 1 a 100), respondendo quase instantaneamente e de maneira correta. O jovem Gauss depois confessou ter percebido que: 1 + 100 = 101, 2 + 99 = 101, …, 50 + 51 = 101. Logo o resultado procurado era: 50 x 101 = 5050. (DOMINGUES, 1993, p. 82)

Alguns professores e colegas que já lecionam dizem que apenas uma imagem pode tomar a aula toda, que é de 45 minutos, 30 dos quais são efetivamente úteis. Mas isso não é um argumento contra o uso de uma imagem. As imagens complexas, como a gravura de ArtactQc apresentada aqui, se trabalhadas de maneira cuidadosa e incisiva, são uma forma de melhorar nos alunos a capacidade de abstração necessária ao aprendizado da sociologia, além de ser uma ponte interessante para os conteúdos. Embora não tenha experimentado na prática, acredito que também funcione como um motivador para a participação em sala, pelo menos no momento em que o aluno consegue elaborar sozinho uma interpretação interessante. E para conseguir esse feito é necessário algo mais do que a sociabilidade cotidiana é capaz de lhe proporcionar, um passo além que a didática e a sociologia podem proporcionar.

REFERÊNCIAS

ArtactQc. “L’Embarras du Choix”. Disponível em: <http://artactqc.com/wp-content/uploads/2012/11/lembarrasduchoixhires.png>. Acesso em: 4 ago. 2014.

DOMINGUES, Hygino H. “Calculistas mentais: espécie em extinção”. In: IEZZI, Gelson et al. Matemática 2º grau, 1ª série: versão azul. São Paulo: Atual, 1993.

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4 Comments

  1. Acho que a abstração deve ser o início de (quase) todos os temas lecionados. Isso faz o aluno mergulhar no tema fazendo com que ele se questione. A solução ou explicação para suas perguntas serão respondidas ao longo da explanação do professor. A abstração vai direcionar o aluno ao ponto que o professor quer chegar e, nesse caso a imagem, pode servir de guia. L’Embarras du Choix possui muitos elementos interessantes e é de um tema atual. Particularmente acho a imagem inquietante.

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    1. Acredito que a auto-reflexão é intencional, é uma atitude de direcionamento do exercício de abstração, mas tenho certeza que depende completamente da disposição do aluno. E se existe um momento ótimo para este exercício, creio que seja mesmo o início da aula, aqueles 10 ou 15 minutos nos quais a turma está mais receptiva, como diz Patrick, colega nosso do Pibid.

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